Introdução 

Em Julho deste ano tive o azar de ter tido um percalço grave que na minha saúde que me obrigou a parar e a ser internado em dois hospitais públicos. Primeiro no Hospital Garcia de Orta em 2 serviços: cuidados intensivos e enfermaria de nefrologia. E depois no Hospital Curry Cabral no serviço de nefrologia. Tudo isto durante um período de mais ou menos 4 semanas. Durante esse período e entre análises, exames e outros atos médicos, não tive a melhor experiência enquanto utente do SNS. Experimentei mesmo aquilo que todos nós ouvimos falar que é o ou parece ser a total decadência do SNS e o seu completo desfoco no paciente/ser-humano.

E é com base nestas experiências que, enquanto profissional da indústria digital especialmente na área de UX – User Experience que relato neste artigo a minha opinião de como a falta de pensamento sistémico (Systems Thinking) compromete muito a recuperação e a cura dos pacientes.

 

Systems Thinking em Poucas Palavras

Nada nem ninguém vive isoladamente, tudo ao nosso redor está de alguma forma ligado ou relacionado, e mudanças numa parte afetam outras partes (efeito borboleta), ou seja vivemos em sistemas ou se preferirem estamos inseridos em ecossistemas.

Um sistema é qualquer grupo de partes interativas, inter-relacionadas ou interdependentes que formam um todo complexo e unificado que tem um propósito específico. E na saúde, enquanto seres humanos que somos, isso é mais do que notável, ainda que, como relato na minha experiência, os governantes e os seus profissionais não o vejam dessa forma.

Ao pensarmos em Systems Thinking permite-nos compreender a relação entre o problema que estamos a resolver e as soluções que criámos.

O processo de análise ajuda a entender a interconectividade e como cada elemento se relaciona entre si; O Systems Thinking procura descobrir relações entre os elementos dentro de um sistema. Por exemplo: A relação entre um paciente e o seu médico, e os outros médicos, os outros pacientes, os enfermeiros, os assistentes técnicos, os assistentes operacionais, os seus familiares e os familiares de outros doentes..… Ou a relação do paciente com as instalações como o quarto, as salas de exame, as casas de banho, o espaço exterior,…..Esta é uma ferramenta de diagnóstico útil para contextualizar o problema.

 

O Quadrante das Necessidades do Ser Humano

Se pensarmos na forma como vivemos, independentemente de sermos ricos ou pobres, novos ou velhos, saudáveis ou com menos saúde, solteiros ou casados, temos necessidades a que as empresas devem estar atentas para tornar a experiência de cliente boa e diferenciada. 

Estas necessidades, singularmente, podem-se manifestar com mais força em determinadas etapas da nossa vida, episódios da vida, tipo de empresas que estamos a falar. 

A falha em entender este fenómeno, que por si só é sem dúvida um sistema – o Ser Humano e o seu Ecossistema de Necessidades -por parte das entidades e/ou pessoas que criam, mantêm e dirigem os diferentes produtos/serviços, cria ainda mais problemas do que aqueles que inicialmente têm para resolver.

Quadrante das Necessidades - Systems Thinking na Saúde

 

As Experiências em 2 Hospitais Públicos e a sua Relação com o Systems Thinking e o Círculo das Necessidades Humanas

As minhas experiências no Hospitais Garcia de Orta e Curry Cabral foram distintas, ambas más, mas distintas porque o estado de saúde em que estava em cada um deles variou. 

No Hospital Garcia de Orta – serviço de cuidados intensivos – considero que a experiência que tive foi boa, no sentido de não ter nada ou muita coisa a apontar. Aliás, considerando o fenómeno da psicologia aplicado ao campo de UX que é a Peak-End Rule, foi neste serviço que me ressuscitaram e isso foi o que me ficou na memória. 

Já na enfermaria de nefrologia a experiência foi péssima. Aplicando o mesmo fenómeno da Peak-End Rule o que me ficou na memória foi o dia 15 de Agosto de 2022 por volta das 11:30, altura em que tive alta.

Uma vez que a experiência nos cuidados intensivos não foi má, talvez porque a maior parte do tempo estive adormecido, vou focar-me na experiência na enfermaria de nefrologia e identificar alguns pain points.

Vivência – Como Vivemos e Convivemos — Quando estamos internados, o hospital passa a ser a nossa “casa”, os outros pacientes os nossos colegas bem como os médicos, os enfermeiros e os assistentes técnicos e operacionais. Então, faz sentido, se estivermos a pensar em Systems Thinking que as Administrações hospitalares vejam a forma como vivemos no hospital como uma extensão, ainda que temporária, da nossa casa, vida e hábitos. 

Olhando para o Circulo das Necessidades, os hospitais terão que perceber as necessidades dos pacientes – além da necessidade de cura – e posicionar os diferentes espaços físicos como uma extensão da vida das pessoas. 

Em termos de Systems Thinking e Necessidades Humanas e olhando para os meus pain points da experiência: 1 – em ambos os hospitais tive de utilizar para tomar banho uma casa de banho comum e aberta a todos os doentes daquela enfermaria e eram mais de 15 doentes! 2 – As referidas casas de banho eram completamente datadas, tinham falta de torneiras, falta de mobiliário, num deles, o poliban tinha ferrugem e as paredes muita humidade que se notava com a visão, mas também com o olfacto, – cheiro a bolor; 3 – não havia gel de banho, shampôs ou sabonetes (e note-se que se existe disponibilidade e vontade para fazer a barba aos doentes com utilização de gillette e gel de barbear também deveria haver a preocupação com o resto da higiene) e já não falo nos descartáveis.

Instalações limpas e higienizadas e cuidadas > Menor probabilidade de existência de bactérias/vírus > Menor probabilidade da pessoa contrair uma infeção local ou uma septicemia == Melhor e mais rápida recuperação

 

Equilíbrio e Lazer – Como Dormimos — Hoje em dia um paciente internado num hospital tem horários “peculiares” de acordar e fazer a higiene corporal bem como de tomar algumas refeições. O despertar é entre as 6:00 e as 6:30 da manhã, sendo que a higiene é feita nessa altura, e o jantar por exemplo é às 19:00. E estes horários existem não para bem do paciente e ser humano, mas para tornar a mudança de turno dos enfermeiros e auxiliares mais célere. Mas pior que existirem estes horários é haver uma pressão enorme, no caso dos serviços de alimentação, para que os pacientes comam depressa porque é preciso levantar o tabuleiro, arrumar a copa e ir embora. 

Olhando para o Circulo das Necessidades, na parte da Vivência – Como dormimos e a quantidade de sono que temos (e está provado em diversos estudos) é não só importante para as pessoas saudáveis, o que se dirá para pessoas em recuperação. 

Em termos de Systems Thinking e Necessidades Humanas e olhando para os meus pain points da experiência: 1 – em ambos os hospitais tive de praticar os referidos horários, e o horário de acordar e a pressão para fazer as refeições é por demais stressante.

Passando e pensando naqueles que nos visitam e que fazem parte da nossa vida e é quem nos dá força e nos ajuda a ultrapassar as nossas dificuldades e a tornar os momentos mais difíceis como estar doente e internado um pouco melhores. 

Em termos de Systems Thinking e Necessidades Humanas e olhando para os meus pain points da experiência: 1 – as visitas serem permitidas apenas a partir das 14:00 da tarde; 2 – as visitas só pode ser uma pessoa; 3 – as visitas só poderem durar 1hora, sendo que essa hora será dividida no caso de outros doentes da enfermaria terem também visitas para essa hora.

Estar com os familiares, amigos > mais dopamina, serotinina, endromina e ocitocina (hormonas da felicidade) em circulação > torna a situação, ou pelo menos o dia melhor e mais feliz. Há até quem “viva” a pensar na altura da visita > o ânimo e a motivação do doente tende a aumentar == Melhor e mais rápida recuperação

Pensando agora nos enfermeiros e nos assistentes operacionais e técnicos e até mesmo nos médicos, há que haver um interesse em conversar e explicar ao doente o que se passa com ele, quais serão os próximos passos, que tipo de procedimento se está a fazer ou vai fazer, quais os resultados dos exames e das análises e até mesmo perguntar se está tudo bem diariamente, passar a visita diariamente….Facto é que a minha experiência nestes 2 hospitais não foi a melhor a este nível de vivência. Houve muita falta de comunicação e isso deixa os pacientes preocupados e ansiosos, além de que não podem informar o enfermeiro sobre alguma coisa que ele tenha dúvida, porque o médico não falou com o doente. 

Em termos de Systems Thinking e Necessidades Humanas e olhando para os meus pain points da experiência: 1 – raramente o médico(a) passava no piso diariamente para conversar comigo sobre a minha situação; 2 – a não ser quando tive alta, os resultados dos exames e análises não era dados ou informados ao doente; 3 – Se não perguntasse, nenhum enfermeiro se dignava a dizer o que quer que fosse sobre a medicação administrada ou a necessidade de fazer algum procedimento médico ou de enfermagem….

Profissionais empáticos e interessados > O paciente percebe que os enfermeiros percebem a sua situação e aquilo que estão a passar > Maior o esforço do doente em ajudar e ajudar-se == Melhor e mais rápida recuperação

 

Equilíbrio e Lazer – Como Compramos – Pensando nos espaços em redor dos hospitais ou mesmo dentro dos hospitais. Este é um tema muito relacionado com o ponto anterior e a empatia de quem nos trata. Em termos de Systems Thinking e Necessidades Humanas e olhando para os meus pain points da experiência: 1 – ninguém me informou se haveria uma papelaria para poder comprar uma revista ou um jornal diário; 2 – as tais águas que eram trazidas por familiares quando estes podiam ir à visita, podiam estar a preços mais acessíveis aos doentes; 3 – se quiséssemos comprar algum miminho (um chocolate, uma fruta, um caderno e uma caneta para escrever, etc.) para além de não nos terem dado informação, acredito que esses espaços não existissem. E já não falo, ainda que acredito que mais cedo ou mais tarde isso aconteça, pode é demorar tempo, da disponibilização para doentes que estão em internamentos de longa duração, de acesso a meios informáticos para se poder fazer compras online como livros para ler, por exemplo.

Viver num hospital > Proporcionar momentos de ócio e de lazer > Menor tempo para pensar naquilo que é mau na doença > Mais distração == Melhor e mais rápida recuperação

 

Ócio – Como Trabalhamos – eNinguém trabalha num hospital, é verdade! As pessoas estão lá para estarem descansadas, terem momentos de lazer para se esquecerem do mal da doença. Mas nos dias que correm, até porque todos nós temos um smartphone, faz todo o sentido, os doentes serem informados, por exemplo da password do WiFi, até para poderem fazer video chamadas para os seus familiares (cá está o Systems Thinking a funcionar). E até para doentes que estão em internamentos prolongados, faz sentido poderem utilizar passivamente, se quiserem o WiFi seja para as videochamadas, para jogar, ou até mesmo para fazer algum trabalho.

Viver num hospital > Poder estar virtualmente com família e amigos | Poder trabalhar de alguma forma > Menor tempo para pensar naquilo que é mau na doença > Mais distração == Melhor e mais rápida recuperação

 

Alimentação – Como ComemosNinguém gosta de estar internado! Seja porque tem um problema grave de saúde e tem de ficar 2 semanas “instalado” numa enfermaria, seja porque tem febre e precisa de ser monitorizado. Não sou exceção e detestei a experiência de internamento destes dois hospitais públicos. Todos nós sabemos ou ouvimos dizer que “a comida de hospital é uma porcaria” e na realidade a comida no Garcia de Horta – Nefrologia não era saborosa. Mas a questão em termos de Systems Thinking e Necessidades Humanas é o facto de (pain points): 1 – a dieta que me foi prescrita nos cuidados intensivos não foi alterada no momento em que fui transferido para a enfermaria (as minhas necessidades na UCI são diferentes das minhas necessidades na enfermaria); 2 – não me foi prescrita uma dieta de acordo com a minha sintomatologia; 3 – eram distribuídas apenas 2 garrafas de 0,5L / dia. Melhor do que no Curry Cabral em que a distribuição de água por parte dos serviços estava proibida pela Administração como forma de poupança, imagine-se!!! Os rins funcionam à base de líquidos e o melhor deles é a água; 4 – não me foi disponibilizada uma nutricionista para perceber que tipo de ingredientes, em que quantidades e como cozinhá-los deveria comer para recuperar mais rápido, bem como em casa.

Dieta e Nutrientes adequados > Melhoria nos parâmetros bioquímicos e compostos iónicos do organismo == Melhor e mais rápida recuperação

 

Conclusão

  • A primeira conclusão a retirar é que tudo o que foi exposto neste artigo pode e deve ser pensado e transposto para todo o tipo de indústrias: hospitais, seguradoras, bancos, cadeias de restaurantes, cadeias de lojas de roupa, empresas tecnológicas….a experiência de cliente deve ser vista de uma forma holística e com a pessoa e a empresa integradas nos diferentes “Systems” em que estão inseridos. 
  • A biologia do Ser Humano e a importância da visão holística – Systems Thinking – dos problemas de saúde do Ser Humano, tal como acontece ao se estudar e implementar uma transformação digital numa empresa.
  • A necessidade de haver um foco no doente e no seu problema e não na solução, com base em sintomas ou histórico de saúde.
  • A experiência do doente deve ser vista como um todo, tal como deve acontecer nas áreas de UX – Research Estratégico – e não com o foco apenas nos sintomas, no órgão que está mal ou olhando para o serviço em que o doente está internado ou até mesmo fazendo juízos de valor sobre patologias pré-existentes – Research Longitudinal.